Não é possível explicar dum modo claro como é que Deus permite que uma criança de dezoito meses morra em vinte dias num hospital, detectada a doença - leucemia - e tendo sido garantido aos pais que o caso tem cura.
Essa criança era o meu sobrinho bisneto, o mais novo. O Pedro. Ou Pêpas, como lhe chamava a Avó com ternura infinita.
Há quatro dias ainda ele estava vivo no hospital e toda a família ia seguindo pelo whatsupp os progressos do pequenino. Sempre à espera de boas notícias. Nunca se espera o pior.
De repente, a realidade veio ao de cima.
Tudo mudou.
O Pedro apagou-se. Aquele sorriso lindo desapareceu, as mãozinhas aveludadas deixaram de se mover, os olhos escuros e vivos fecharam-se para sempre. Como a chama duma vela ténue. Sem ruído, sem dor.
Quando a minha sobrinha ficou grávida, há dois anos, resolvi fazer uns casaquinhos à moda antiga em tricot e tive um gosto enorme em verificar que ainda conseguia fazer algo de jeito. Mandei-lhos para Lisboa e vi o Pedrinho em fotografia. Fui sempre seguindo o crescimento do meu sobrinho pelo FB, pois a mãe do menino é fotógrafa e punha fotos lindas dos filhos no mural dela para nós apreciarmos. Estou longe de Lisboa, é raro ir lá, mas sabia bem quem era aquele pequenino.
Nestes dois dias só me vinha à cabeça a frase de Augusto Gil que todos sabemos de cor: E as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?
Mas não acredito que haja um Senhor, nem que a vida tenha qualquer sentido.
Só sinto revolta e raiva. É injusto perder um filho quando 90% das leucemias na infância têm cura. É aviltante. A morte devia ser para os velhos, os que já viveram tudo.
Ontem fui para o Botânico.
Chovia a cântaros, mas eu queria que chovesse lá fora como chovia dentro de mim. Estive minutos sentada a ver a chuva a cair.
Tudo chorava. Os plátanos, as tílias, os áceres, os buxos, as camélias desfolhadas, a glicínea, a vinha virgem. As lajes estavam brilhantes e polidas como nunca. As folhas no chão cheias de gotículas de água que aumentavam as nervuras e as manchas arruivadas. O céu parecia de chumbo, sem sombra de azul. Toda a natureza era um espelho do que me ia na alma.
Fica aqui o meu tributo ao Pedrinho que eu amava, mal conhecia e nunca virei a conhecer melhor.
Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será pra ti
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô
Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô
Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô
Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme quinda à noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô