Acordei há uma hora como se tivesse dormido a noite inteira. Deitei-me eram 2 da manhã, de modo que dormi apenas três. Não conseguia estar na cama....
Acabei agora mesmo de ler o livro sobre o meu Avô, escrito pelo meu Irmão mais novo e apresentado há uma semana. O meu filho esteve no seu lançamento na Sociedade de Geografia e comoveu-se extraordinariamente com a presença de inúmeras pessoas da família e outras que ele não conhecia, todos interessados num livro biográfico - mas não só - que levou, segundo o meu Irmão, oito anos a compilar, a selecionar, a recortar e a comentar.
O que gosto neste livro é do equilíbrio entre a aproximação e o distanciamento que o meu irmão, enquanto narrador, consegue estabelecer nos diversos capítulos do livro.
Há capítulos que analisam momentos históricos e que nos são descritos pela mão do meu Avô, um homem nascido em Goa, onde viveu até aos 25 anos, patriota, viajado, perfeitamente lúcido e crítico do seu país e do mundo em geral. Pelo meio, surgem outros capítulos mais ego-centrados, onde a sua personalidade emerge, deixando-nos um testemunho luminoso mas pungente do dia a dia na "pútrida" Lisboa, que ele considerava um mundinho mesquinho e cheio de si, sem noção da sua pequenez e insignificância social.
O meu Irmão limita-se a comentar em notas de rodapé alguns enganos que, anos mais tarde, provariam como o meu Avô estava iludido, por exemplo, quanto ao amor que a sua filha, demasiado ocupada com a casa, a vida profissional do meu Pai, ou os seus oito filhos, ainda jovens e a frequentarem o liceu, lhe dedicava. O meu Avô não se conformava com a distância das pessoas que amava.
A vida corta sempre os laços entre pais e filhos por muito que os queiramos manter à nossa beira. A distância entre a nossa casa no Restelo e a dos meus Avós era de uns dez kilometros, o autocarro levava meia hora e nem sempre tínhamos tempo para os ir visitar, mas, mesmo assim, muitas vezes almoçámos por lá, passámos tardes de sábado inteiras (que adorávamos) naquela bela marquise cheia de plantas lindas e peças indianas ou no seu escritório,um verdadeiro manancial de objectos com a marca do meu Avô, desde as caveiras que nos metiam medo até aos Mefistófeles esguios, Budas em várias posições, caixas de sândalo e uma estante giratória com livros encadernados e por vezes forrados por ele com letras douradas.
O que me surpreendeu mais foi verificar pelas suas Memórias que o meu Avô foi um Homem muito só, apesar de estar rodeado de pessoas que lhe queriam bem. A sua argúcia levava-o a pintar o seu mundo dum modo hipercrítico, mas infelizmente, verdadeiro. Também a si próprio se julgava com severidade, sabendo no fundo que estava certo nas suas posições políticas ( exemplares), na defesa da sua pátria pela qual lutou ano e meio no palco da 1ª GG, nas suas posições religiosas, que compartilho inteiramente e na sua visão do mundo, deslumbrada por vezes, céptica amiúde, desapontada e triste quase sempre.
O meu Avô viveu quase um século nos períodos mais conturbados da nossa história, a sua experiência de vida era riquíssima e não conseguia ignorar a mediocridade dos novos governantes e senhores dos destinos do país, as suas vistas curtas, a ignorância total acerca da História e da importância de Goa, como único marco da grandeza do nosso país. O seu repúdio por Salazar é constante, reduzindo a sua
corte a um grupo de oportunistas ou mentecaptos, prediz a sua "queda" e um triste fim oito anos antes disso vir a acontecer. O meu Avô faleceu em 1963.
Um livro que todos devíamos escrever, ou seja, Memórias que todos devíamos deixar aos nosso netos para que eles saibam bem donde viémos, quem nós fomos e o que sentimos perante a vida.
Um livro que me deixa com mais vontade ainda de conhecer o meu Avô, que mais me une a ele e me dá certezas quanto às minhas raízes.
Não consigo deixar de estar grata ao meu Irmão por mais este feito, que demonstra também como, na nossa família, nos sentimos orgulhosos daqueles que nos precederam.