Passei alguns dias a ler cartas nossas.
Revivi intensamente todo o nosso percurso de 1965 a 1973, ano em que casámos. Houve hiatos pelo meio, mas nunca rupturas totais, mantivémos sempre uma ligação, mesmo que ténue.
O caminho a dois foi árduo, esgotante, deixou marcas profundas em nós, jovens, e estas marcas reflectiram-se na nossa relação mais tarde.
Feitios diferentes, objectivos diferentes, uma paixão que era alimentada pela distância que nos separava em tempos difíceis, certezas, decepções, dúvidas, momentos de êxtase, tudo está naquelas 500 ou mais cartas que nos escrevemos durante cinco anos.
Uma coisa é certa: nunca deixámos de nos amar, nunca amámos mais ninguém com o mesmo ardor e intensidade, ainda hoje nos preocuparíamos um com o outro, se a Vida o tivesse permitido. Estávamos sempre unidos nos problemas, menos nas alegrias...
Não sei se fiz mal em ler estas cartas. Fiquei com a certeza de que se voltasse atrás, teria feito o mesmo, sobretudo durante o namoro, em que tive muitas ocasiões para lhe dizer definitivamente adeus.
Também me fiquei a conhecer melhor e com uma ideia mais precisa da jovem que fui.
Consegui perceber algumas coisas que ainda hoje me inquietavam sobre o meu ex-marido. A vida foi madrasta para ele em muitos aspectos - perdeu o Pai aos 18 anos - fez-se a pulso, estudando com bolsas várias, foi um dos melhores do curso, mas nunca quis, nem pôde, arriscar-se a vôos mais altos. Mesmo assim foi um dos mais novos a chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. Sempre extremamente exigente consigo, comigo e com os filhos, incutiu-nos valores que perduram no tempo. Também moldou demasiado a minha maneira de ser e a minha espontaneidade.
Como diz o meu neto mais velho: "O Avô tinha carisma". É verdade.
Nunca tinha pensado nisso, acreditam?
Hoje enquanto passeava perto do Palácio da Justiça, local onde ele trabalhou durante 25 anos perguntei-me se valeu a pena tanto sacrifício, tanto desvelo, tanta dedicação. Nunca faltava, nem sequer no dia em que nasceu o meu filho mais novo e eu fiquei sozinha na Maternidade. Era um mouro de trabalho, os processos tinham mais peso que a família ou o lazer. Levava sempre trabalho para casa nos fins de semana e nas férias.
É bom saber isto, mas faz-me pena que ele não tenha aproveitado melhor a Vida, viajado mais, gozado mais os filhos, os netos, todos os que o amavam tanto.
Talvez todos sejamos um pouco assim e não saibamos aproveitar a vida como ela merece. O seu ex-marido fez o melhor que sabia e que podia e, pelo que leio nas suas palavras, foi imenso. E isso é muito bonito.
ResponderEliminarSim, ele achava que ser Juiz era uma missão. O meu filho vai pelo mesmo caminho....
EliminarBjo
Temos duas coisas importantes na vida: a profissão e a família. Saber conciliá-las é muito difícil e portanto, cometemos erros que só mais tarde reconhecemos.
ResponderEliminarTODA a gente se culpa disso, é geral. Mas devemos pensar que o fizemos em nome de algo que na altura julgávamos importante: desafogo financeiro para a família, realização pessoal e profissional, etc.
Está "história" repete-se de geração em geração. Basta ver a vida atribulada e de correria desta nova geração...
Bjs
É verdade. Ao casar deve-se considerar o que é mais importante No meu tempo há 45 anos os homens tinham preponderância na escolha e a profissão deles era sagrada. Sempre trabalhei imenso mas contra o aviso do meu marido, que achava demais. Foi um dos pomos de discórdia, nunca aceitou o meu sucesso profissional totalmente. Hoje é ainda pior porque ambos querem o trabalho acima de tudo.
EliminarO que escreve é sempre apelativo . Agradeço a partilha dos seus desabafos tão delicados e revelados de forma discreta e digna . Pode acreditar que ajuda... Feitios diferentes acho que não tem nenhum problema desde que se vão moldando um ao outro . Se os objectivos de vida em comum divergem aí já se torna mais complicado ...
ResponderEliminarTem de se dar por feliz de ter filhos exemplares e , pelos vistos, os netos vão pelo mesmo caminho . Surpreendeu-me a conclusão que chegou o seu neto . Sabe, a minha mãe corria para ajudar pessoas em aflição , mas se fosse para festas ou divertimentos não ia nem gostava. Levei tempos a perceber este comportamento .E eu sei que era também alguém com muito carisma . Está a ver como ajuda a pensar .
Beijo .
Durante muito tempo duvidámos do nosso futuro em comum e limitávamo-nos ao nosso Amor sempre presente. Nada nos demovia e estivémos a 500 km de distância num Portugal com estradas indescritíveis, anos 69-70. Eu era menina de Lisboa, acabei por me adaptar a ir viver num ermo porque adorava o meu marido e depois os meus filhos. Vir para o Porto foi o começo do fim, embora tenhamos vivido muitos mais anos juntos. A interferência da minha sogra e dos seus infindáveis problemas e doenças minou a nossa relação. Nunca me separei porque não tinha dinheiro, nem queria traumatizar os filhos. Quando eles sairam de casa, tudo mudou.. Obrigada pelo se comentário sempre tão querido.
ResponderEliminarTalvez o trabalho o realizasse e o fizesse sentir feliz, assim como estar com a família e tudo o demais que gostava de fazer, e lembrar isso possa ajudar
ResponderEliminarum beijinho
Gábi
Sim, ele gostava do que fazia, mas também exagerava na minúciae cuidado com tratava todos os casos. Confiava em mim para tratar dos filhos, embora fosse extenuante fazer tudo em casa como eu fazia. Nem sei onde ia buscar forças para manter um clima agradável no meio daquilo tudo. :)
ResponderEliminarBjo
Que diziam/dizem os seus filhos de toda essa carga de trabalho a que a mãe era sujeita?
ResponderEliminarOs meus filhos não são chamados a este blogue, Dalma.
EliminarAliás todos três sairam de casa aos 18 e 20 anos para estudar no estrangeiro.
Desculpe, não era minha intensão ofendê-la mas apenas tentar compreender muito do que escreve aqui.
EliminarIntenção, Dalma.
EliminarSim, intenção! O iPad "preferiu" a primeira e eu não dei por ela!
EliminarLembrei-me de trazer para aqui, parte de um Sermão feito pelo Canon Henry Scott Holland no Domingo de Ramos de 1910 que encontrei num livro (quando passei por uma perda, ajudou-me um bocadinho lê-lo, porque é como eu queria que fosse):
ResponderEliminarO Quarto Ao Lado
A morte não é nada ... Eu apenas fui para o quarto ao lado. Eu sou eu, e tu és tu. Seja o que for que tenhamos sido um para o outro continuamos a ser
Chama me pelo meu nome de sempre, conversa comigo da forma espontânea que sempre usaste.
Não uses um tom diferente, não faças um ar forçado de solenidade ou mágoa.
Ri como sempre rimos das pequenas brincadeiras que nos divertiam aos dois.
Brinca … ri … pensa em mim … reza por mim.
Deixa o meu nome continuar a ser o nome familiar que sempre foi, deixa-o ser falado sem ênfase, sem qualquer sombra.
A vida tem todo o significado que sempre teve. É a mesma que sempre foi
Não houve nenhuma quebra de continuidade.
O que é a morte além de um pequeno acidente?
Porque deveria ficar fora do teu coração só porque estou fora da tua vista? Eu estou à tua espera, este é só um intervalo.
Algures muito próximo, logo a seguir à esquina.
Está tudo bem.
um beijinho e boa noite
Gábi
Lindíssimo, Gabi. Foi um dos textos mais bonitos que li até hoje sobre a morte. Muito obrigada do coração. Fez-me bem ler isto. Bjo grande.
ResponderEliminarHá um tempo adrenalínico, de trabalho e acção, outro endorfínico, de família e bem-estar, lazer e serenidade. A arte está em conseguir o equilíbrio... de qualquer modo, não idealizemos as pessoas - a melhor forma de permancerem vivas é mantermo-las humanas, com as suas virtudes, mas também com os seus defeitos.
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