quinta-feira, 20 de abril de 2017

A espuma dos dias



Tenho passado parte dos meus dias, desde que vim de Leeds a arrumar as cartas que encontrei na antiga casa da minha sogra, primeiro numa caixa de papelão, depois numa gaveta, cheias de pó, mas intactas, tal qual as enviei.

É comovente reler o meu "diário" de há 50 anos. É mesmo um diário, pois eu escrevia todos os dias ao meu "namorado", a quem amava profundamente e a quem dediquei todos os meus anos de juventude com um a fé, uma esperança e coragem que me admiram hoje.





As nossas cartas, poéticas algumas, apaixonadas outras, algumas mais duras ou mesmo críticas, eram uma alegria. O carteiro já nos conhecia- a ele em Coimbra, a mim em Lisboa...

Nem sempre tínhamos dinheiro para selos, mas lá desencantávamos, quem no-los emprestasse. Outras vezes esquecíamos-nos de as deitar no marco e era uma tragédia. Todos os membros da minha família deitavam cartas no correio por mim. E apoiavam as nossas epístolas... :)

Em muitas cartas o Manel enviava-me poemas. Conhecia tantos!
Eis aqui um dos que me mandou do Paul Éluard:

Elle est debout sur mes paupières
Et ses cheveux sont dans les miens,
Elle a la forme de mes mains,
Elle a la couleur de mes yeux,
Elle s'engloutit dans mon ombre
Comme une pierre sur le ciel.

Elle a toujours les yeux ouverts
Et ne me laisse pas dormir.
Ses rêves en pleine lumière
Font s'évaporer les soleils
Me font rire, pleurer et rire,
Parler sans avoir rien à dire.

As nossas visitas um ao outro eram esparsas. Não tínhamos transporte na maioria das vezes ou não havia dinheiro. O Manel estudava com uma bolsa , que mal lhe chegava para comprar tudo o que necessitava e não queria pedir ajuda à Mãe porque era muito orgulhoso. Preferia passar sem supérfluos, excepto os cigarros e o cinema, que lhe eram indispensáveis.  Eu vivia da mesada que o meu Pai me dava - 600.00 para comida, transportes, livros, cinemas, viagens, etc -, mas só em transportes gastava 8.00 a atravessar Lisboa todos os dias. Não havia passes de estudantes e nós morávamos a 15km da Universidade. Os livros eram todos estrangeiros e caríssimos. Não havia sebentas na FLUL.

Quando vejo os jovens hoje em dia a gastar em tudo quanto há, fico surpresa como é que sobrevivíamos, estudávamos quase sem livros nossos. Tirámos cursos com boas notas e sempre fomos tão responsáveis. Não estou aqui a gabar-me, mas a constatar os factos.

Sempre dei aos meus filhos quase tudo que eles ambicionavam, desde que fosse algo útil, mas muito mais do que alguma vez tive ou o meu marido tivera com a sua idade. Ele censurava-me duramente por lhes satisfazer muitos dos sonhos. Foi assim que ofereci ao meu filho o seu primeiro computador, o Spectrum XP, que ele adorou. Hoje é engenheiro de telecomunicações. Ao meu filho mais novo, dei colecções inteiras de livros policiais e de História, a sua paixão. Hoje é Juiz. A minha filha já tinha muitos livros em nossa casa, mas ainda comprava mais, foi sempre uma bookworm como o Pai. Tirou LLModernas e depois fez MA em tradução.

Enquanto jovens, tínhamos muitas dúvidas quanto ao futuro, várias vezes o nosso namoro foi-se abaixo com angústia e receio de que não aguentássemos tantos anos naquela espera dolorosa. O medo do futuro abalava a nossa relação, para mais com a tropa obrigatória nos anos 70. Tínhamos altos e baixos, que nos deixavam desiludidos de alguma vez conseguirmos chegar à meta.

Hoje, ao reler estas cartas,  tenho a certeza de que o nosso Amor foi algo especial, algo de Belo, algo de mágico. Procurámos a Felicidade a dois a pulso.

Infelizmente, não conseguimos realizar o sonho de vivermos juntos para sempre.

Agora, porém,  ninguém nos pode separar mais.

E como canta Joe Dassin: Et si tu n'existais pas, dis-moi comment j'existerai.





6 comentários:

  1. Deve ser muito bom ter essas cartas para reviver esses momentos.
    um beijinho
    Gábi

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  2. É, sim , Gabi. Ao princípio faziam-me chorar, mas agora dão-me uma alegria intensa....parece que volto aos meus 20 anos...
    Bjinho

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  3. Eu também acho que iria chorar do príncipio ao fim... Não conseguia ler, tenho a certeza. Dava-me uma angústia enorme recordar bons tempos que não iriam repetir-se. Teria que deixar passar muito tempo. Mas eu, confesso, não sou muito corajosa nestas coisas. Admiro-a, sinceramente. Lembro-me que durante o coma de 3 meses,da minha filha não consegui ir ao quarto dela! Teria que ver tudo o que ela gostava, que ela escrevera, que ela comprara, não sei.... Era tão doloroso que se me tornava impossível. Mas reconheço que está atitude de enfiar a cabeça como a avestruz não ajuda NADA...
    Bjs GRANDES.

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  4. Não fazes ideia Geninha, como me têm feito bem estas cartas. São tão completas, tão minuciosas, tão ternas e genuínas que eu descubro-me e descubro um Manel que tinha esquecido. Olho para a foto dele e sinto que ele está aqui comigo. Tenho remorsos de não ter dado mais chances ao nosso casamento, mas a certeza de que enquanto namorada fui o melhor que podia numa situação extremamente exigente.
    Quando a Luisa esteve no hospital tb me custava muito entrar no quarto dela, até agora me custa só porque ela não está cá!!
    Bjinhos

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  5. Muitas recordações são por vezes dolorosas mas também compensadoras porque têm o condão de nos fazer reviver momentos mágicos
    Ab
    Regina

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    1. É verdade. Abstraímo-nos da realidade e esquecemos o momento pungente que estamos a viver....
      E para mim tem sido uma viagem ao fundo de nós mesmos, é espantoso o efeito que ler este diário provoca em mim.
      Bjo

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