quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A morte é uma terra estranha



Não é possível explicar dum modo claro como é que Deus permite que uma criança de dezoito meses morra em vinte dias num hospital, detectada a doença - leucemia - e tendo sido garantido aos pais que o caso tem cura.
Essa criança era o meu sobrinho bisneto, o mais novo. O Pedro. Ou Pêpas, como lhe chamava a Avó com ternura infinita.
Há quatro dias ainda ele estava vivo no hospital e toda a família ia seguindo pelo whatsupp os progressos do pequenino. Sempre à espera de boas notícias. Nunca se espera o pior.

De repente, a realidade veio ao de cima. 
Tudo mudou.
O Pedro apagou-se. Aquele sorriso lindo desapareceu, as mãozinhas aveludadas deixaram de se mover, os olhos escuros e vivos fecharam-se para sempre. Como a chama duma vela ténue. Sem  ruído, sem dor.



Quando a minha sobrinha ficou grávida, há dois anos, resolvi fazer uns casaquinhos à moda antiga em tricot e tive um gosto enorme em verificar que ainda conseguia fazer algo de jeito. Mandei-lhos para Lisboa e vi o Pedrinho em fotografia. Fui sempre seguindo o crescimento do meu sobrinho pelo FB, pois a mãe do menino é fotógrafa e punha fotos lindas dos filhos no mural dela para nós apreciarmos. Estou longe de Lisboa, é raro ir lá, mas sabia bem quem era aquele pequenino.

Nestes dois dias só me vinha à cabeça a frase de Augusto Gil que todos sabemos de cor: E as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?
Mas não acredito que haja um Senhor, nem que a vida tenha qualquer sentido.
Só sinto revolta e raiva. É injusto perder um filho quando 90% das leucemias na infância têm cura. É aviltante. A morte devia ser para os velhos, os que já viveram tudo.

Ontem fui para o Botânico.
Chovia a cântaros, mas eu queria que chovesse lá fora como chovia dentro de mim. Estive minutos  sentada a ver a chuva a cair.

Tudo chorava. Os plátanos, as tílias, os áceres, os buxos, as camélias desfolhadas, a glicínea, a vinha virgem. As lajes estavam brilhantes e polidas como nunca. As folhas no chão cheias de gotículas de água que aumentavam as nervuras e as manchas arruivadas. O céu parecia de chumbo, sem sombra de azul. Toda a natureza era um espelho do que me ia na alma.





Não consigo deixar de pensar na injustiça que é a Vida.

Fica aqui o meu tributo ao Pedrinho que eu amava,  mal conhecia e nunca virei a conhecer melhor.



Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será pra ti
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme quinda à noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer
Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô

6 comentários:

  1. Lamento muito saber! Tão triste. As suas palavras comoveram-me.

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    1. Obrigada, Belinha. Tinha que expressar aquilo que sinto. É para isso que o blogue também serve. Bjinho.

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  2. Um grande abraço. Não me ocorre mais palavras a não ser de revolta. Mas..contra quê ou contra quem?

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    1. Contra a Vida e a nossa vulnerabilidade, Júlia. Um abraço e obrigada por ter cá vindo.

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  3. Admiro muito a Dra. Virgínia e sigo as suas fotografias,sua pintura e a sua escrita, mas por vergonha nunca me atrevi a comentar nada.
    Mas hoje, foi mais forte. Sou avó também e só pensar numa tristeza assim, não ia aguentar.
    Peço desculpa pelo atrevimento, mas aceite um enorme abraço.
    Maria Isabel

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  4. Muito obrigada, Isabel. Ainda estou a processar o desgosto e tudo o que esta perda comporta. Um beijinho.

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