segunda-feira, 8 de maio de 2017

Sentimentos




Muitas vezes o meu marido me censurou por ter um feitio contemplativo. Dizia ele que, em momentos cruciais, me ficava a olhar sem agir. O que não era verdade. 

Lutei contra essa ideia durante mais de 40 anos. Trabalhei no duro, enfrentei situações do "arco da velha", dei voltas e voltas por cima, nadei num mar revolto e cheio de redemoinhos, consegui sempre chegar a terra firme. Sozinha.



Nunca me evadi pelo prazer de o fazer. 
Se o fiz, foi para sobreviver psicologicamente à depressão ou ao drama que se desenrolava à minha volta. E em desespero de causa.

Agora, sem marido, sem trabalho, sem amarras,  volto aos meus 20 anos. 
Foram anos de evasão ao quotidiano, de amores ardentes, de sonhos, de anseios, de fé na vida. 
Os melhores anos, apesar dos condicionalismos do nosso amor.

Releio as nossas cartas todos os dias - é quase vício -  e deparo com frases lindas, algumas escritas já 30 anos depois do nosso primeiro encontro. Pelo facto de serem românticas, não são menos sentidas ou verdadeiras. 

A vida encarregou-se de destruir muitos dos nossos anseios - os meus, sobretudo - e de me revelar com crueza a futilidade dos meus sonhos. 

Reagi mal. Evadi-me. Como hoje e agora.  


Tenho tanto sentimento 
Que é frequente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal. 


Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada. 



Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar. 

Fernando Pessoa - Cancioneiro


4 comentários:

  1. Todos os dias conquistamos graus de liberdade... se tivermos a ousadia, perdermos o receio de nos enfrentarmos a nós próprios e pensarmos a vida como uma oportunidade, mais do que como uma derrota.
    Há sempre alguma coisa boa para ver, mesmo que no meio da desgraça. É essa a faceta positiva dos "contempladores", mesmo que a atitude de contemplação e sensibilidade faça, de vez em quando, sofrer mais.

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    1. Aleluia, conseguiste entrar aqui.
      Já tinha saudades duma palavra fraternal, já que a família nunca se pronuncia sobre o que escrevo, não sei porquê. Pensam talvez que isto é lido por todos e receiam a sua privacidade. Ou então, pura e simplesmente detestam blogues :)
      Também me acontece agora rever o que fiz e por que fiz e às vezes custa-me muito não poder start again. A vida é mesmo assim, cada decisão acarreta consequências enormes que nos fazem pensar à posteriori se foi a melhor decisão.

      Bjos

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  2. É assim que me vejo como contemplativa

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